Aconteceu tudo em Coimbra neste alfarrabista. Um lugar de escolha cuidada.
segunda-feira, 30 de março de 2009
Osoroshi
A si próprio se chamou Osoroshi, termo japonês que na nossa língua se traduz por O Mete-Medo. Wenceslau de Moraes, oficial de Marinha, excepcional escritor, exemplo de invulgar sensibilidade e de honorabilidade. Já tinha reunido o que considerava ser a obra toda porque recentemente editada em Macau, dispersos muitos dos livros da mais antiga saída da Parceria António Maria Pereira. Cruzei-me hoje com este, que são cartas a Alfredo Ernesto Dias Branco, um oficial do Exército, escritas entre 1905 e 1929. Na última, já sem data, a pouco tempo de morrer o autor de Dai-Nippon deixava, como um prenúncio: «estou doente. Mal posso escrever».
Aconteceu tudo em Coimbra neste alfarrabista. Um lugar de escolha cuidada.
Aconteceu tudo em Coimbra neste alfarrabista. Um lugar de escolha cuidada.
domingo, 29 de março de 2009
sábado, 21 de março de 2009
Um príncipe em casa
Devo ao Bettencourt da Câmara * a revelação: a primeira edição portuguesa da obra O Príncipe de Maquiavel só ocorreu - espanto - em 1935, através da Atlântida, de Coimbra, ornada «com um artigo de Mussolini a servir de introdução». Referi-o na apresentação que escrevi para uma edição que a Presença publicou o ano passado da mesma obra, em nova tradução. Seria em 1945 que Manuel Mendes e Berta Mendes trariam para a Cosmos um Maquiavel, agora já não pré-fascista, mas sim democrata e amigo do povo. Vicissitudes da vida e obra de uma desgraçada criatura de que estudei o teatro e a poesia.
Encontrei-a hoje, na Rua Anchieta, aquela comprometedora edição. Trouxe-a para aqui, contente por estar agora à mão. Até aqui tinha lido por amabilidade de empréstimo, que é uma forma tímida de se ler. Agora verei como é tê-lo comigo.
* Câmara, João Bettencourt da, A Primeira Edição d’ O Príncipe ou o Maquiavel Fascista de Francisco Morais, em Res-Publica, Revista Lusófona de Ciência Política e Relações Internacionais, 2005, 1, 5-6
Papel pardo
É um manuscrito de Carlos Queiroz. Tem como suporte uma folha de papel pardo, a qual o pintor Bernardo Marques (1899-1962) utilizara para limpar os pincéis, segundo informação da viúva e doadora, Maria Elisa Marques. Encontrei-o, aqui, por ser o dia mundial da poesia. «Se eu tivesse nascido no seio da província, era fatal, que o meu sonho maior era triunfar na capital». Nem tudo é grande na grandiosidade. Há na insignificância também a grandeza dos sentimentos.
A Ucrânia
Compreende-se agora, quando se progride na leitura, porque se chama O Apocalipse dos Trabalhadores. Valter Hugo Mãe traz à nossa literatura Andriy e Sasha e a Ekaterine, de Korosten, perto de Chernobyl, na Ucrânia. Andriy emigrado para Portugal, o ser mecânico, robotizado, de quem o país emprega os robustos músculos e a rotina de não pensar, que não lhe querem o pensamento nem sentimentos mas, no trabalho braçal, só a mecânica dos gestos, de quem Quitéria se serve do ritual de cada um dos actos que no sexo se aplicam, essa satisfação necessária.
É uma história em que há também Maria da Graça e o senhor Ferreira e o seu pai, tetraplégico, «quadrúpede de tristeza», e a guarda de polícia Quental, a monotonia e o desejo, mais o emprego de carpideira e o trabalhar nas obras, tudo em Bragança, em Vinhais, em Portugal, que na história é o nome de um cão.
É um livro magnífico de gente «com vontade de não se ver existir».
Lia ontem, voltado ao livro, para chegar a «sete milhões de ucranianos morreram à fome nos anos trinta e dois e trinta e três do século vinte», mais «os sete milhões de mortos na segunda guerra mundial», e os mortos mais os afectados pela catástrofe de Chernobyl.
Foi então, com vergonha de ser humano e de ter vivido neste século que, comigo, «na cozinha dos Shevchenko sentavam-se mais de catorze milhões de mortos a olhar para os pratos de sopa». Com fome.
Ei-los enfim chegados à literatura e aos campos de trabalho: os ucranianos e a raiva de sobreviver. Obrigado pela memória e por escreveres tão bem.
sexta-feira, 20 de março de 2009
Rebelo da Silva
Luiz Augusto Rebelo da Silva viveu quarenta e nove anos [1822-1871] e escreveu quarenta e um livros. Estudou matemática e letras, foi jurisconsulto, deputado, romancista, historiador, em suma, uma intranquila criatura.
Grande parte da sua obra perde-se por ter sido impressa em mau papel. As edições em oitavo tiradas no início do século vinte desfazem-se nas mãos, alguns tomos aparecem irmanados com um barbante e laçarote para não se desconjuntarem. De quando em vez lá surge um volume mais afortunado, encadernado. Apenas a sua História de Portugal (séculos XVII e XVIII) mereceu honras de edição cuidada, prefaciada e organizada pelo falecido professor Borges de Macedo.
Dele disse Ramalho Ortigão que tinha o diabo da arte no corpo o amor das letras na massa do sangue [As Farpas, Janeiro de 1884, edição Corazzi, tomo III, pág. 44 e ss., e Paladinos da Linguagem, 1.º vol., Aillaud e Bertrand, Lisboa, 1921]. Compreende-se bem porquê.
quinta-feira, 19 de março de 2009
A lei do descanso
Imagina-se no Franz Kafka depressão, melancolia, um universo concentracionário, os tectos baixos. Bem, os tectos baixos existem. Quando Josef K. entra na sala de interrogatório, um salão familiar adaptado a tribunal, instalado improvisadamente numa casa de habitação - onde é que eu já vi isto? - todos os da magna assembleia «eram forçados a inclinar-se para se manterem de pé e batiam com as costas e cabeças no tecto», pelo que «alguns tinham trazido almofadas que haviam colocado entre as suas cabeças e o tecto para não se esfolarem».
Ora, estando já a sorrir com esta pictórica descrição, não se espera é que se solte o riso quando se lê que a menina Elsa, que de noite trabalhava como criada numa taberna, «durante o dia recebia as suas visitas metida na cama». O que se compreende, pois há o direito ao descanso: o que puderes fazer deitado não o faças sentado, o que puderes fazer sentado não o faças de pé.
quarta-feira, 18 de março de 2009
O regulamento
«Ultrapasso a minha missão ao falar-lhe tão amistosamente», disse o polícia a Josef K., acrescentando, ao referir-se ao seu colega: «também ele o trata simpaticamente à revelia do regulamento». É assim em O Processo de Franz Kafka: a amabilidade é uma irregularidade, a denúncia uma calúnia que solta os mastins da lei.
segunda-feira, 9 de março de 2009
A redenção
Há no filme O Leitor tantos aspectos de magnificência humana que isolar um só é um atentado contra a suprema arte de ter sabido contar assim aquela pungente lição de humanidade. Mais do que uma história sobre a culpa alemã, ele é uma fábula sobre a inocência do Homem, sobre a redenção possível. Esta noite a lua enchia os céus e os corpos da abundância da renovação.
domingo, 8 de março de 2009
Era uma vez
Uma biblioteca desmorona-se, um homem morre. O arquivo continha manuscritos de Karl Marx. Há quem pense que a cultura é perigosa e que o marxismo mata. Ontem revi uma grande parte do filme Violência e Paixão do Visconti. Tudo começa em torno de uma biblioteca. Também ali o velho palácio ameaça ruir. Mas a história é bela. O professor vence a solidão e descobre a alegria de viver. A vida triunfava no momento em que, com sono e constipação, deixei o resto para depois. Como não me lembro da narrativa tudo pode acontecer quando retornar ao filme. Espero que acabe bem. Há um momento em que a esperança nasce em que ao menos uma vez as histórias acabem bem. Uma última vez.
sábado, 7 de março de 2009
Um engate
A boa escrita é um engate. Prende-nos como um anzol, vai-nos dilacerando a carne ao arrastar-nos. Retomei hoje a leitura. «Fazem-me mais triste, eu sei, mas estiveram sempre convencidos de que a obra que deixaram me haveria de fazer feliz», pensava Maria da Graça, a personagem de Walter Hugo Mãe, a mulher-a-dias, que entregava o corpo e o tempo ao senhor Ferreira «com o maldito categoricamente afirmando que lhe punha as mãos pela oportunidade», devolvendo-a, «assim conspurcada ao marido». Uma escrita poderosa, ágil, funda, a contar, toda em minúsculas, que «o amor criado assim, a partir de quem se odeia, é o pior, dizia-lhe a quitéria, é como lutar com a sombra». O livro chama-se O Apocalipse dos Trabalhadores. Não lhe conhecia outro livro. Agora, quando este se esgotar, irei a todos.
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