domingo, 29 de maio de 2011
A mítica marrafa
Creio que foi no outro fim de semana que acabei "As Três Mulheres de Sansão" de Aquilino Ribeiro.É lugar comum dizer-se que rico é o seu vocabulário, provindo das arcas velhas da língua, que o leitor só desvenda em sua densidade de elucidário na mão.
É lugar comum reconhecer-se que poucos conhecem como ele a alma humana, situado o homem nas suas raízes telúricas, pó, húmus, seiva e cheiros, vida repartida com a animalidade de que proveio.
É lugar comum encontrar-se nele a razão social literária e sem militância, o anseio por um mundo outro de que os livros são o reverso pelo retrato vivo de um mundo insuportável que anametiza mesmo quando apenas o descreve.
O que não é lugar comum é o milagre que renasce em cada leitura da sua obra. Nesta novela são os seus conhecimentos bíblicos, que o seminário lhe afundou nas meninges a contar-nos um inaudito Sansão, «instruído das imundícies da carne, mas não calmado», juiz «terrível martelo de Deus contra os gentios», porque «andava muito relaxada a moral pública, eram bastos como sarna os delinquentes».
E depois foi Dalila a podar-lhe a gaforina, e assim ele «por mais que se encabritasse» já sem tesura nos braços nem arrimo na gana, em molície agora e lassidão minado e por isso indefeso, caído às mãos dos filisteus e à sorte dos seus deuses mansos, que para feroz, vingativo e impiedoso já bastava Jaweh que o deixou cair como a cão tinhoso pela longa estrada do pó do abandono.