sábado, 4 de outubro de 2014

A dolência da volúpia


Compram-se ao desbarato, as editoras a querem livrar-se de stocks, diminuírem rendas com armazéns, melhorarem a tesouraria, despachá-los a preço abaixo de saldo, rebaixando-os que seja. São preciosidades, porém, que foram retiradas do mercado depois de terem efemeramente passado pelas livrarias, do que o leitor não assíduo nem deu conta.
No caso, trata-se de um escritor que teve muito contra si, desde logo a ideologia política a que se manteve fiel, o ter sido galardoado pelo antigo regime e não se ter transmutado num parvenu de Abril - e ele houve tantos, tantos que se tornaram "antifas" e assim subscreveram a apólice do seguro de vida literária - e depois o tom pícaresco da sua escrita, malandra, de língua solta, a tratar das coisas do tímido coração misturadas com as pulsões do baixo ventre, escrita servida por uma extensão vernácula da vertente vicentina do nosso vocabulário ao que muitas sensibilidade pudibundas sentem o ai!  ambíguo arrepio da rejeição que em si contém o frémito do ui!, o desejo reprimido.
E, no entanto, não há nele a decadência regurgigante da devassidão narrativa nem a redundância semeada a esmo do palavrão canalha, porque cada uma dessas obscenas palavras venais vem da boca onde é certa e natural forma de linguajar da personagem. E há sobretudo a grandeza do domínio do verbo, na carnação susbtantiva do mesmo, lânguido, mordente, amplexo entre o escrito e o lido e «o enlace teve repentes de fera e dolências de volúpia», para tomar a expressão de um dos seus contos.
Estou a lê-lo, interpoladamente como sempre porque para além dos livros há a vida.
Talvez Tens Visto o Antão? não seja o mais expressivo conto que esta antologia reúne, escrito a 21 de Outubro de 2009, meses de morrer, mas é que marca o seu modo de ser e assinala-o até até ao fim como uma marca de água que desse ao papel o discreto timbre.
História da "azougada" Elisette Fernandes, magreza de tísica, resíduo entre tempos de teatro barato, corista de palcos poeirentos pelo Parque Mayer, resto do que fora, idas as luzes, devolvida a caracterização, encerrada a cena, «descendo, com poses de diva, as escadarias finais do acto». História sem história, ela "A Doida do Martinho", o Martinho do Rossio que não o pessoano da Arcada, ela, ali plantada, hirta no seu vestido antiquado, «a cloche enfiada num cabelo tinto negro», louca, porque enlouquecida, transformando ânsias em actos, actos em acusações, estas em escândalos, mamas flácidas que já nenhum chegado lúbrico lhe apalpava e houve tempos mas hoje, porém, pretextava terem sido assediadas por imaginários atrevidos, como na verdade assim em tempos de «noitadas de revista e cabaré, o morno voluptuoso da cama do pecado.»
António Manuel Couto Viana é um grande escritor. Façam dos seus livros o que quiserem haverá quem os recolha amigavelmente, pela sua lírica, pela verdade pungente do que escreve,  o mundo colectivo no seu rodapé, o mundo individual nas suas entranhas.
Ricardo de Saavaedra, que lhe compilou a obra, reuniu em extenso tomo uma longa conversa biográfica, acompanhando-o até ao fim, Por ali dei conta que a estupidez da vida nos fez cruzar sem nos termos encontrado, eu envolto em personagens bufas pelos alcouces da vida pública.
Trouxe-o agora comigo no que nos deixou: a obra, esse modo estranho de um Homem querer ficar.