A Queda de um Anjo de Camilo Castelo Branco pode ser lido, e há quem leia, como se lido Eça de Queiroz, naquilo em que há nele, em parábola humorística, de crítica social, chacota à vida política e parlamentar do tempo, diatribe à pomposidade oca dos seus discursos, ao caciquismo como forma de promoção partidária, ao triunfo da mediocridade pelo arranjismo
A obra teve primeira edição em 1865, tinha Eça vinte anos, dez anos antes de se ter aventurado pela ironia cáustica com O Crime do Padre Amaro.
Li-a agora na 7ª edição, dita conforme a 2ª, esta revista pelo autor, publicada em 1925 pela Parceria António Maria Pereira, naquelas edições populares, em oitavo, em papel pobre, encadernadas sem título na capa, sim apenas na lombada.
O que retive foi menos aquela dimensão que hoje se diria de intervenção social pelo sarcasmo literário - essa embora impossível de não se denotar - mas o riso, sim, de trágica ironia sobre os acidentes do amor e seus ridículos.
A personagem, presta-se ao efeito. Sente-se em Calisto Eloy de Silos e Benevides de Barbuda, morgado da Agra de Freimas, nascido na aldeia de Caçarelhos, termo de Miranda, em 1815, filho de Basilissa Escolástica e de pai também Calisto, casado com sua prima direita, D. Theodora Barbuda de Figueiroa, ela também morgada, mas de Travanca «senhora de raro aviso, muito apontada em amanho de casa, e ignorante mais que o necessário para ter juízo», o corpo de «poucas carnes» em que assentará a soma de anedóticos particulares que o tornam grotesco.
E é assim que ruma a Lisboa onde «o demónio parlamentar descobre o anjo» e nas Cortes o novel tribuno se destaca, primeiro, pelo burlesco dos seus discursos de cândido puritanismo e de de estrénuo combate pelos antigos valores legitimistas para, de comicidade em comicidade, ferrar o pé nos salões de Lisboa, nestes na casa de um antigo desembargador do Paço, pai de duas galantes senhoras, uma casada e outra solteira, aquela envolta em trabalhos íntimos extra-conjugais.
É por aqui que o fio da história se descose, Calisto qual anjo custódio, urde a seguir «o caminho da predestinação de desviar aquela senhora do caminho mau» e a conquistar as graças do choroso pai, arqueado de gratidão pela restituição da paz doméstica, sem saber que novos bulícios lhe surgiriam porquanto, o anjo salvador, casado embora, seria acometido por serôdia paixão pela filha disponível.
Eis o que se me tornou o momento mais inesperado e marcante do livro, a fisiologia, diria físico-química da fulminante paixão, eis Camilo em um dos seus magníficos arranques:
«Foi neste momento que o morgado da Agra de Freimas sentiu no lado esquerdo do peito, entre a quarta e a quinta costela, um calor de ventosa, acompanhado de vibrações elétricas, e vaporações cálidas, que lhe passaram à espinha dorsal, e daqui ao cérebro, e pouco depois a toda a cabeça, purpureando-lhe as maçãs de ambas as face com o rubor mais virginal».
Mais! Explorando a fundo a caricatura e com ela a mofa, continua o autor da Brasileira de Prazins:
«Duas enfermidades há aí, cujos sintomas não descobrem as pessoas inexpertas; uma é o amor, a outra é a ténia. Os sintomas do amor, em muitos indivíduos enfermos, confundem-se com os sintomas do idiotismo. É mister muito acume de vista e longa prática para discriminá-los. Passa o mesmo com a ténia, lombriga por excelência. O aspecto mórbido das vítimas daquele parasita, que é para os intestinos baixos o que o amor é para os intestinos altos, confunde-se com os sintomas de graves achaques, desde o hidrotórax até à espinhela caída.
«E aqui está que Calisto Eloy - ia-me esquecendo dizê-lo - também sentiu a queda da espinhela, sensação esquisita de vácuo e despêgo, que a gente experimenta, uma polegada e três linhas acima do estomago, quando o amor ou o susto nos leva de assalto repentinamente».
Eis a fisiologia do amor, o «beliscão suavíssimo», «as misérias e parvoíces d'esta serôdia mocidade», o «trabalharem-no umas cogitações tão sandias, que seriam imperdoáveis, se não estivessem na tresloucada natureza de todo o homem que ama», esses «hórridos eclipses do entendimento que após si deixam lágrimas tardias e vergonhas insanáveis».
Perfilhado como «filho de mãe incógnita», órfão de pai aos dez anos, Camilo vivia então, idos amores tumultuosos, com Ana Plácido, em São Miguel de Seide. Por ela e com ela expiara na cadeia pelo crime de adultério.
É, pois aqui que tudo se situa e tudo se explica, a escrita obra de catarse e expiação.
«O amor é tão engenhoso como a natureza» remata-se na obra, no penúltimo capítulo antes da conclusão. Um escritor como Camilo sublima esse engenho com magnificência da Arte de dizer.