sábado, 12 de junho de 2021

Palavras e Sangue

 


O privilégio de ter um livro, ainda que amarelecido, encarquilhadas as folhas, desbotadas quando não manchadas, a capa, porém, ainda a resistir. Um daqueles livros em que os cadernos iam cosidos antes de a capa ser colada aos folios já batidos, mas em que a guilhotina se ausentava, deixando o corte dianteiro rugoso e imperfeito. 

Livro destinado a ter de se abrir com uma faca e ter uma faca adestrada a cortar papel, tudo relíquias de um tempo que parece já tão sumido no tempo, livro indiscreto, a denunciar não ter sido folheado sequer ante os maços por abrir.

Livro assinado pelo que antes o teve como seu, no caso em 1957, ano desta edição, identificado com um ex-libris e que na biblioteca pessoal teve número de ordem manuscrito na folha de guarda.

Livro com orelhas, a esquerda de resumo da própria obra, a direita a anunciar a próxima da colecção, assim fidelizando o leitor.

Livro com capa do pintor Bernardo Marques, que tanto trouxe à ilustração editorial com o seu traço em que pressentimos um Almada Negreiros ou um Mário Eloy.

Ter um livro cuja tradução se prenunciaria fraca, por ter sido isso infelizmente o que sucedeu na editora, mas que é notável porque afinal do poeta brasileiro Mário Quintana, sendo este o seu primeiro trabalho de tradução para a "Editora Globo", versão revista para português de Portugal pelo açoriano Agostinho Vieira d'Areia.

Ter a oportunidade de o livro, buscado à estante, ser de Giovanni Papini, essa portentosa figura do panorama literário italiano, de quem tento juntar quanto posso e ler tudo o que escreveu.

Livro de breves contos, publicado no original em 1912, precisamente no ano em que o autor parecia esgotado com o seu "Un Uomo Finito", ano prolífico em que traria a lume mais três obras, este, "Palavras e Sangue", traz-nos a escrita paradoxal, a equação do tempo com o seu espaço e todo um referencial onírico de desdobramento do eu em um mundo que é o seu próprio espelho.

Difícil escolher em tantas da narrativas qual a que melhor figuraria neste apontamento. Logo o primeiro em que «um pescador estendeu as suas redes e de dispôs a enganar também naquele dia os ridículos peixes», em que «o vento soprava ainda mais forte, encolerizado com a preguiça das nuvens»; ou aquele a que chamou "Sem Razão Alguma", para cujo personagem, «a insónia era o seu excitante e as obras por escrever alinhavam-se, noite a noite, na sua memória, como sonhos artificialmente conservados».

Pena faz que talvez já não haja leitores para quem «todo este presente não é mais do que um prefácio», sensibilidades comuns de alguém «encerrado como uma mónada, secreto como uma célula, mudo com um nocturno felino», seres para os quais «a quinta essência da subtileza filosófica consiste em descobrir a diferença entre iguais».

Fico por aqui. Mundos pequenos: um dos pseudónimos de Giovanni Papini foi "Gian Falco", o mesmo como se iniciou na escrita a nossa Irene Lisboa, a quem dediquei um blog, há tanto tempo por visitar.