terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Malanje ao sábado

Lembrei-me agora, mas passou-se no sábado se não estou confuso com datas e tenho estado. Fui à Rua Anchieta, ao lado da Bertrand, a livraria que tem aquele cheiro doce logo na sala de entrada. Há lá, na pequena artéria que vai dar ao Governo Civil, uma venda de alfarrabistas. Normalmente começo pelo fundo da rua, venho até ao princípio, farejando banca a banca, deixando-me tentar, viciado. Por vezes faço duas voltas, como o pintor dá duas demãos, a engomadeira uma nova passagem para reforçar os vincos numas calças teimosas, a jovem que, não acreditando no Responso a Santo António, passa e repassa pelo bosque dos amores em busca da travessa para o cabelo que, distraída de namoro, por ali deixou ficar.
Ora neste sábado encontrei-o. Editado em 1954, era uma reportagem sobre a cidade de Malanje, em Angola. «Olha que fantástico», disse eu, ao bem-humorado livreiro, com aquele inesperado opúsculo nas mãos. E de facto era notável pelas recordações que me trazia: o senhor Pratt do Banco de Angola, o Santos Pinto, a Casa Americana, o jardim do Caminho de Ferro, a Robert Hudson. Tudo aquilo me dizia tanto.
«Nasci aqui», confessei-lhe, incapaz de reter mais tempo aquele segredo, prendendo-lhe com isso, inesperadamente a atenção, confidente e amigo.
Com ele em frente, bigode farto, sorriso aberto, era já impossível não o levar comigo. «Mas são vinte e cinco euros», cortei, timorato por tal banalidade, um pequeno esgar que parecia traduzir incerteza, tão automático que nem dele me apercebi, a envergonhar-me por estar a regatear um tesouro.
Só que de repente o destino jogou a sua cartada na mesa deste jogo de sorte. «Olha, o meu avô!». Ali estava ele, de facto, numa festa de Natal da Cotonang, a companhia belga de algodão, o velho Rebelo da Silva, pai da minha mãe.
Talvez uma aura de ternura, bálsamo de remorsos e perfume da bondade, me tenha envolto a figura, adoçado a pose. De livro ainda na mão, enternecido por haver ali um passado que era meu, ouvi-o, como num murmúrio segredar-me, meu querido livreiro: «faço-lhe vinte euros».