quarta-feira, 31 de agosto de 2005
A época de recurso
Trancado na casa de praia, um estudante prepara a época de Setembro. Pela frente, milhões de folhas por estudar. Ansioso, faz resumos. Hoje é dia de jantar fora. Depois, mais uma madrugada, a rádio como companhia próxima, a cidade como memória distante. Trancado, um estudante envelhece.
O sol
Ontem não vim aqui. Isso não tem importância alguma. Só a mim me incomodou. Num blog que se chama janela, admitamos que ela estava empenada. O sol faz destas coisas. Tal como no Mersault do Camus, foi o sol, só o sol.
segunda-feira, 29 de agosto de 2005
Explicando melhor
A janela do ocaso daria, no imaginário de quem lê, esplendorosamente sobre o mar. Dela se veria o instante mágico do raio verde, o segundo único em que se some a luz diurna e a noite chega, morna e equívoca. Só que o sol também se põe por detrás de duras serranias, entre azuis brumosos e verdes espessos, visto de frestas enfarruscadas de fuligem, chaminés improvisadas de fumeiros vespertinos, prenunciando o caldo e a deita. E igualmente há o anoitecer na charneca da planície, ainda mal dispersas as vagas ondulantes das tardes de calor, o dia de amanhã monótono como o de hoje e como ele sem história futura. A verdade é que tudo ocorre nesta nesga de cidade. Mísera janela, insignificante mansarda, um terceiro esquerdo que às quatro da tarde perdeu a luz, e pela noite se afunda em escuridão. A janela do ocaso são as tabuínhas cerradas de uma vida a encurtar-se, vivida sofregamente nesta escrita a entristecer-se.
domingo, 28 de agosto de 2005
A chave sextavada
O Mickey Mouse tem seis dedos, o que é a unidade de medida do sistema hexadecimal. Tudo se mede na escala de seis, como na cronologia: sessenta minutos, sessenta segundos, trezentos e sessenta minutos. Rafael pintou em pelo menos três dos seus quadros as figuras de São José, do Papa Sisto IV e de São João Baptista com igual polidactilia. A superstição leva a pensar que um tal número de dedos equivale a um sexto sentido. Uma coisa é certa, criaturas destas só contam as coisas às dúzias e não é por cupidez, é porque são assim de nascença.
sábado, 27 de agosto de 2005
O jardim das delícias
Passeava madame sua nervosa cadelinha, em aprazível jardim nocturno, não sem que de súbito surgisse, vindo das sombras sinistras de um arbusto, ávido canzarrão. Atiçados pelo instinto, dir-se-ia, no que isso é possível em cão, caíram nos braços um do outro. Cena a princípio ternurenta, o frenezim rápido deu em equívoco, num instante em embaraço. Num volteio de snifadelas mútuas, dir-se-ia que, indiferentes ao mundo, ali mesmo se enroscariam em amplexo obsceno. Munida do único meio pelo qual garantiria a moral canídea e protegeria a decência humana, madame, ruborizada retesava a trela, aos sacões. Num espamo final de fúria mal contida, cadelinha e cão ensarilhados na correia, arrastados enfim jardim fora, entre risos trocistas dos passeantes e a cólera disciplinadora da senhora. Amanhã, estou certo, passeará madame, inocente gato, arisco miau.
sexta-feira, 26 de agosto de 2005
A mãe
Era um pequeno café, de balcão minúsculo, daqueles de bica cheia e sandes de queijo com pouca manteiga. A menina que ali servia esboçava um sorisso que as olheiras fundas demonstravam esforçado. Uma luz violácea, nocturna, iluminou-lhe por momentos um rosto miúdo e exausto. Sentada a um canto, uma criança ensonada fazia brinquedos de latas vazias: «Mãe, vamos para casa ou a nossa casa é aqui?». Senti vergonha de pedir o meu café, como se assim perpetuasse aquela desumana escravidão. Na esplanada, sonoras gargalhadas de boa disposição, enchiam a noite.
quinta-feira, 25 de agosto de 2005
O às vezes do dia
Nem sempre há que dizer, ou para escrever. Nem sempre há que ouvir. Muitas vezes há que fingir. Mas o que há sempre, na realidade surda, muda e analfabeta da vida, é o dia de amanhã.
quarta-feira, 24 de agosto de 2005
Uma ensaboadela urgente
Segundo reza a folha oficial, o Decreto-Lei n.º 142/2005 veio estabelecer o regime jurídico dos produtos cosméticos e de higiene corporal, transpondo as Directivas nºs 2003/15/CE, 2003/80/CE, 2003/83/CE, 2004/87/CE, 2004/88/CE, 2003/15/CE, 2004/94/CE e 2005/9/CE, que alteraram a Directiva nº 76/768/CEE, do Conselho, de 27 de Julho, relativa à aproximação das legislações dos Estados membros respeitantes aos produtos cosméticos. Oportuna legislação, num momento em que tudo isto já cheira mal! Uma só coisa me aflige, e ainda não li a nóvel legislação. É que se essa Europa jurídica, que tanto tem estrangeirado a nossa pátria e desconsiderado a nossa identidade nacional, se terá lembrado de legislar sobre o sabão macaco! O nosso!
terça-feira, 23 de agosto de 2005
segunda-feira, 22 de agosto de 2005
A caça grossa
Já se falou que chegue nas férias do sujeito e terem sido no Quénia. Mas uma coisa ninguém disse. É que ainda era só putativo candidato ao lugar que ocupa e já o homem em entrevista ao «Expresso» se definiu como um «animal feroz». Ora, por ser assim, a ir ao Quénia, uma criatura destas não poderia ir à caça, quando muito para ser caçado. Isto porque para ir ver os bichos na reserva, vê-nos a nós, a fugir da queimada!
Modos de ler
Eu confesso que não consigo ler o livro do Mário Cláudio sobre o Amadeu Sousa Cardoso [ou Amadeo Souza-Cardoso, já nem sei]. O livro tem o aliciante de ser pequeno, mas é como aqueles caminhos curtos mas pedregosos. Doem-me os pés. Vou tentar lê-lo de outro modo, talvez com as mãos.
domingo, 21 de agosto de 2005
Semana aziaga
Ao domingo eu vejo sempre o meu horóscopo no jornal. Não que me guie pelo que lá se diz. É só para ficar com a sensação de que a partir de segunda-feira a vida não é como eu gostava que fosse, mas sim como está predestinado que seja. Depois, vem o começo da semana e esqueço as previsões e luto como um danado para impor a minha regra. Domingo seguinte, volto ao mesmo e compro o jornal. É um divertimento inocente: eu a fazer como se fosse livre, o horóscopo a ser como se fosse fatal. Esta semana, porém, o meu universo resvalou. Não só o horóscopo não trazia o Carneiro como repetia duas vezes o Leão. Fiquei sem saber como vai ser e a desconfiar que isto, afinal, é na base do tanto faz. Temo o pior: a ser a vida sem predestinação e só em função do que eu quero, temos desastre pela certa.
O número que é um logro
«Senhor José», o problema é o seu computador que tem um «spyware». «Senhor José, qual o seu tipo de acesso?». «Senhor José, vá ao iniciar e carregue em executar». «Senhor José, vamos ligar o computador directamente ao modem». «Senhor José o senhor não tem um cabo USB?» «Senhor José quando é que disse que lhe surgiu o problema?». «Mas senhor José se o senhor diz que toda a gente tem internet menos o senhor, pode ser algum problema na partição da rede. Aguarde um momento...». «Senhor José, obrigado por ter aguardado. Importa-se de verificar qual a luz do modem que está a piscar?». «Está lá? Senhor José? Está?». Click! Desculpem, a «net» voltou. Não sei como, nem porquê. Voltou, pura e simplesmente!.«Obrigado, senhor José. Posso ser-lhe útil em mais alguma coisa?». «Uma bifana e uma imperial?? Senhor José, o senhor deve ter-se enganado no número...».
sexta-feira, 19 de agosto de 2005
A mesa oito
Cheguei esfaimado. Restaurante cheio, a esta hora, hoje é quinta, vem tudo da praia, tenha paciência mas olhe ó faz favor talvez esta mesa. Plantei-me em frente. Eram quatro: marido lingrinhas, senhora anafadota, filha espigadota, menino indigesto, com ar de acampados. Alapados à mesa, não descolavam. Só que era a única mesa, a minha mesa prometida. Sorri, num incentivo ao ala! Faltavam, porém, a amendoa amarga, a tizana quentinha, o para mim nada e o corneto de morango, por esta ordem. Vieram, depois de um século. Voltei a sorrir, agora vagamente implorante. Será a minha mesinha, desculpem, mas não há pressa, estejam à vontade. Bebericada, sorvida, arrependida, lambido, tudo também assim. Tudo muito lentamente, com todos os vagares. Fiz um esgar, a dentuça a ranger. Três e meia da tarde. Mas faltava ainda o cigarro, o chichi, o telefonar, o quero mais outro geladinho. Que bem que se está aqui! Foi aí que a coisa se deu! Uma vertigem, um instinto primitivo, picos eriçam-se na pele, sobem os sangues à moleirinha! Sorri! Estejam à vontade! Por amor de Deus... Não há pressa! Afinal estamos em férias!
quinta-feira, 18 de agosto de 2005
O lugar incógnito
O irrequietismo, a ânsia permanente, a intranquilidade fazedora, a vertigem da viagem, as saudades prematuras do lugar incógnito, é esse «o combate com o demónio», o génio a expandir-se no espírito medíocre onde a fatalidade o colocou. Enganam-se os que supõem que há seres excepcionais dentro de seres excepcionais, como bebidas de eleição em garrafas de cristal. A tragédia da nossa condição é precisamente essa, a de umas pernas musculosas num ser paralítico, uma imaginação incomum numa mente instável. Há em tudo isso um cansaço que adormece, um desespero que impede de dormir.
quarta-feira, 17 de agosto de 2005
Felizmente há fusíveis
Há nos automóveis um sistema que carrega e outro que acumula. Naqueles chamam-se, respectivamente, o dínamo e a bateria. Como a corrente é alterna, ao dínamo chama-se também alternador. Nos humanos é igual, com uma única diferença: a corrente é contínua. Dei, por isso hoje, ao verificar, que ou a minha bateria morreu ou o dínamo carregou de mais: faço curto-circuito.
terça-feira, 16 de agosto de 2005
O homem do interior
Sinto-lhe, saudoso, à distância o odor, invejoso, aqui, os que a povoaram, esperançado, enfim, a ideia de que amanhã será a minha vez. É a praia, pois que, ainda que escondido sob um chapeirão enfiado até à orelhas, a pele citadina a destoar, ao menos em ideia, sei que bom seria andar por lá. Na ânsia de viajar, até podia aprender a nadar, na de sobreviver, pelo menos a boiar.
segunda-feira, 15 de agosto de 2005
O medo da molha
O homem não esquece que é um animal nem ignora que é parte da Natureza. Mas quando vai à praia nota-se a diferença. Não por estar ali, com os peixes seus irmãos mais adiante na água e alguns raros cães, seus semelhantes, a correrem na areia a trás de bolas. Não é o sol que marca a diferença; ela nasce quando começa a chover. Venha ela, refrescante, vivificadora, purgativa, saneadora mesmo! Olha-se em redor: chapinha nas poças toda a zoologia, escorre e goteja água, como dela se risse tudo quanto é botânica. Só o homem, encolhido, medroso, embrulhado dentro de numa gabardina, abrigado por baixo de um guarda-chuva, parece recusar-se! E logo hoje que, vindo da praia, tenho de ir jantar fora. Com as nuvens escuras que estão, se larga a chover, ainda me constipo!
domingo, 14 de agosto de 2005
Rebajas!
Vinha a subir as escadas do parqueamento quando os vi: eram pequenos quadrados de papel, cortados imperfeitamente, com aparência de terem sido reproduzidos ao fotocopiador. Hesitante, por causa da aparência pública, para não ser surpreendido a andar aos papéis, arrisquei com a certeza de não haver testemunhas do gesto. Apanhei um, o que me permitiu agora copiá-lo para aqui. Intitulava-se «Amante Perfeito» e rezava assim: «desenrascado cuida da casa e cozinha repara também qualquer avaria e conduz. Bonito e muito boa companhia». A seguir vinha o telemóvel. É a segunda vez que o leio. Ao que isto chegou!. Uma coisa destas, tem que se anunciar na via pública! Só pode ser porque ninguém lhe pega. Parece impossível! Os homens andam mesmo a preço de saldo...
De gancho na mão
A blogoesfera é para os depenados aquilo que os caixotes eram para a cãozoada vagabunda e desesperada. Claro que há quem alce a perna. Mas a maioria anda em busca dos despojos do dia e disso se alimenta. É vê-los pela noite à procura. Há por ali verdadeiras preciosidades, sobretudo papelão para aquecer a alma em dias de solidão.
sábado, 13 de agosto de 2005
O sonho
Maravilhoso sentimento este, o da impunidade do dormir. É o sono dos justos, que nenhuma consciência acusa, nenhuma obrigação atrapalha. De todas as funções humanas, é esta precisamente a que lhe dá a certificação do estar-se bem. Claro que, ao mesmo tempo, é uma das que não o distinguem ao homem do animal. No final, bate tudo certo. Restituído ao seu primitivismo atávico, amputado de aflicções, o homem dorme. Por vezes sonha. E como diria o Pessoa, naquele livro que eu ando a ler, um bom sonhador não acorda.
A helicoidal eterna
Sonho estranho o de quem sonha que, subindo pelo avesso de si, há uma escada caracoleante, qual parafuso sem fim, pela qual a alma ascende sem nunca conseguir subir. Acorda-se, enfim, em agonia, desperto pelo entendimento de que não é escada que pára, mas o corpo que a envolve quem, morto primeiro e apodrecido depois, a descarna e desguarnece, privando-a enfim da substância paterna que a alimenta, do invólucro materno que a protege.
sexta-feira, 12 de agosto de 2005
«O saber é a inconsciência de ignorar»
Como nunca me intimido com o que ainda não li, lá trouxe mais uma abada de livros. Entre eles um caderno saído do interminável espólio do Fernando Pessoa, a que a Teresa Rita Lopes, sua compiladora chamou de «A Hora do Diabo». São escritos vários, de momentos distintos, em torno do que poderia ser um conto sobre o Maligno, o «senhor absoluto do interstício e do intermédio, do que na vida não é vida». Como o livro era pequeno comecei a lê-lo, por cima dos outros desprezados, que se acumulam, pacientes, à minha espera. E eis-me ante esse deus triste, que é ele próprio o desejo, mas que só por interposto gesto acaricia. Fiquei-me por aqui, pensativo. Acho que não acabo hoje a leitura. Talvez por interposta pessoa o conseguisse.
Verde de esperança
«Estar esfomeado é uma coisa, mas comer nos intervalos das refeições é outra». Assim geria a sua vida sexual a jovem norueguesa em Paris, ante a ideia disseminada em torno de si de que integraria o exército das nórdicas saudáveis ávidas de prazer. Lembrei-me disto hoje duas vezes. Uma pela hora do lanche. Disciplinado, refreei-me à espera do jantar. Terminei num vegetariano, a comer com pauzinhos.
As horas mortas
A noite progride e com ela as horas mortas. Todos os dias há que acordar cedo para que não se perca o que há para viver. Todas as madrugadas há que deitar tarde, para que se viva a vida que nos foge. O cansaço, corroendo-nos a resistência e minando-nos a disposição, cumpre então desígnio. Aos que resistem ao sono e à fadiga, resta-lhes, enfim, a implosão. Não tem de ser voluntária. Basta esperarem que o tempo os liberte.
O criador fictício
Quantos escritores não desejam pedir aos seus leitores que os não leiam? Amigavelmente, como a sugerir-lhes que vivam a vida sem querer vivê-la através da literatura. Quantos literatura existe que não tem outra vida se não a daqueles que a vivem, lendo-a? Quanto virar de folha entristecido não há, quantas paixões sem índice, quantos amores sem segunda edição, biografias embargadas na tipografia? Vou escrevendo entretanto, autómato, sonâmbulo, criador fictício de sensações reais. Encerrei-me neste velho aramazém. A sua grandeza vazia é a demonstração da pequenez do que faço. Trago comigo uma resma de papel por dia, uma caneta e um mundo para fingir.
Les jeux sont faits!
Amanhã, quando for manhã, há gente que vai onde não quer, outros terão o que não esperam. É assim o mundo neste jogo absurdo. Sentado no tabuleiro verde, junto a mim o conforto residual das sobejantes fichas. Restam-me poucas. Este casaco cerimonioso, que me dá ainda da cintura para cima um ar de solenidade, ajuda a compor a figura. No mais, fico à mercê da sorte que brinca. «Quatro vermelho», perdi uma vez mais. Seja! Há que um homem empertigar-se num momento destes, em que se perde tantas vezes! Aí entra o casaco. É só saber como abotoá-lo e conseguir chegar à porta. A partir daí é mais fácil. Chora-se sem testemunhas.
quinta-feira, 11 de agosto de 2005
Dai-lhes Senhor
O homem lia alto as legendas de um livro. Havia naquela voz o despropósito dos surdos que não se ouvem. Em frente a ele, o ridículo feito mulher, das roupas aquém da idade, aos gestos de um grotesco que envergonhava quem via. Ladeando-os, géneros vários daquelas muitas espécies que são a riqueza da nossa zoologia. Teimei em não ouvir, insisti em não ver, perseguido pela voz estridente, quase alcançado pela caricatura feminina. Eu tinha um livro para me proteger. Levo sempre um livro, como os que levam o de orações. Pai Nosso, supliquei. Ninguém me ouviu. Falava o homem agora da página 24, abanava ela então braceletes com pendurezas.
À espera de vez
Tem-se uma filosofia no recolhimento de uma mansarda, uma religião na solidão de uma igreja, uma sensibilidade no recanto de um bosque. Nada disso, enquanto se espera que o semáforo nos abra caminho ou à espera de vez no balcão do snack-bar. Comprendi hoje porque estou confuso dos sentimentos, seco de sensações, vazio de ideias. Tudo que aprendi com a Natureza esqueci-o nas cidades com que os homens a arrasaram. Hoje refugio-me no interior do jardim em frente e venho aqui para que se perceba, enfim, o esgotamento da espécie. É este o triunfo do mundo moderno. Plantados em filas ao longo dos passeios aplaudem os transeuntes as carretas funerárias dos que a civilização liquidou. Outros, afogados em alcool ou narcotizados em desolação, aguardam, pacientes, a sua vez.
quarta-feira, 10 de agosto de 2005
A construção do tempo
Os antigos liam o futuro nas entranhas dos animais mortos. O hábito ficou como todas as ancestralidades. Nos blogs há o mesmo. Auguram-nos um radioso futuro, revolvendo-nos as vísceras da escrita. E desejam-nos uma longa vida, como se o voto fosse o vaticínio, como se a vida se construísse com a morte.
terça-feira, 9 de agosto de 2005
O circo do sol
A Sónia Delaunay, que por sinal se chamava Sarah, escreveu, quando em Vila do Conde pintava os seus quadros a que chamava simultâneos, que, na busca da luz, ia a caminho do sol. Aconteceu-me o mesmo, só que levei com uma carga de água no lombo!
segunda-feira, 8 de agosto de 2005
O restauro da alma
À segunda-feira é a agonia de estar muita coisa fechada. Uma pessoa bem se abre em alternativas, mas o mundo parece encerrado. Depois, quer-se uma cerveja, termina-se numa Cola-Cola: o distribuidor, imagino eu, está fechado também, se calhar para férias. Resta-nos, aos poucos felizes, os que têm para nos dar a abertura da sua alma. Agora que recolhi ao local do meu ensimesmamento, uma só coisa me parece clara: extraordinária segunda-feira, magnífica circunstância. Eu sei que foi apenas uma aberta depois de vários dias sem sol. Mas uma aberta que me restaura, por dentro, a alma peregrina.
domingo, 7 de agosto de 2005
O perfume da escrita
Há quem tenha tanto para escrever que mal tenha tempo para ler. Aqui o problema é outro, é antes o ter tanto tempo para tanta coisa que não se tem tempo para nenhuma. Penso no que devia escrever quando leio, e no que deveria estar a ler, quando escrevo. Depois há o pior suplício, o ter de ler o que se escreve. Numa coisa a natureza dos odores ajuda: ao próprio não lhe chegam os maus cheiros das suas fezes. Daí que nem se dê por ela.
Pensando em 3D
O Almada Negreiros, esse geómetra do magnífico, escreveu no seu conto «K4, o quadrado azul» que «a perfeição só se define onde não há dimensões». Ei-la pois verdade inatingível neste nosso reino da quantidade, onde a aritmética e seus jogos de soma nula impera, a todos diminuindo o que a nenhum acrescenta. Hoje, refugiado da guerra do calor, estou trancado em casa; não porque tenha aqui ar condicionado, apenas por me sentir bem, ao estar aqui e de modo incondicionado.
Os fios de Ariana
A maquineta é nova e sem fios, a emoção é muita. Quando se telefona de um avião é parecido. A alegria é sempre infantil. Quando se envelhece e ainda se acredita que é possível, julga-se que não vale a pena. O que não é o caso, felizmente, hurra!
sábado, 6 de agosto de 2005
Filosofia da alcova
Sem pés frios e sem cerveja não haveria filosofia alemã, assim como sem o calor e o vinho tinto não teriam existido o Sócrates e o Platão, nem mesmo o Aristóteles. O que eu me pergunto, cruzando as variáveis daquelas duas asserções, é o que é surgirá neste dia de calor e da cerveja para o debelar. Ainda por cima, fria e aos litros. Para já, uma sonolência de morte e uma pesadíssima vontade de dormir, a cabeça em cima dos livros. Venha a cama, logo se verá, ao acordar!
A regra do funil
Sim, tal como ele, eu também preciso de uma regra que me controle a infinidade das possibilidades e me afunile num único sentido. Eu sei que tenho livros que não acabei de ler, alguns ficarão assim a meia-leitura, como bandeira enlutada. Mas estou disciplinado. Leio até às onze, estou a escrever dois livros, tenho um emprego como toda a gente. E tal como ele, sei que os milagres são estes imprevistos positivos. Ele é o Mário Cabral, que não conhecia e de que estou a ler O Acidente, até que sejam onze horas, afuniladamente.
sexta-feira, 5 de agosto de 2005
Doce e de abóbora
Estava uma abóbora sentada, no sofá encalorada, em dia de canícula, como se em noite vinícola. Não fosse o telefone retinir, acabaria mesmo a dormir.
O nome da coisa
Calor peganhento. Um japonês na área de serviço pediu-me para lhe escrever num papel o nome de uma coisa que lhe parecia estranhamente apetecível. Escrevi: pastel de nata. Leu com um sorisso cremoso, como o de quem antecipa o comê-lo. Ri também, estaladiço. Agradeceu com muitas vénias de obligado senhor, obligado e gracias, senhor Portugal, obligado.
Entre o céu e o inferno
O veículo parecia uma aeronave. O sistema de reservas acessível on line. Claro que lá dentro havia dois passageiros para o lugar nove, o lugar dez fora vendido duas vezes. A confusão ameaçava instalar-se. Entre o você desculpe eu tenho o bilhete desde ontem, ao desculpe mas é você que eu daqui não saio, o tom subia de registo. Antes que alguém largasse aos berros, um bébé afogueado desalmava-se a chorar. Chegou entretanto o passageiro para o lugar treze que, azar, estava ocupado por um passageiro com o mesmo número. Uma compreensão fingida e velhaca ante o mas isto anda ou ficamos aqui o dia todo, lá surgia, forçada. O bébé calou-se. Deixe estar, vou aqui para o dezoito! Desculpe mas esse não, porque é de nós os dois. Ómessa! Desculpe mas é vocemecê, mais a pata que o pôs, raios os sumam grandes aldrabões! Chama-se a isto Vale Paraíso. Da próxima, apanho a carreira do Inferno.
Farturas
Quando se anda sem reserva há o risco de não haver lugar. Claro que há sempre a camioneta a seguir. Quando chega, já os outros estão fartos de chegar. Muitos, fartos no sentido literal do termo.
quinta-feira, 4 de agosto de 2005
Patrão em terra
Uma laçada dada no seio chama-se, saiba-se lá porquê, azelha. No seio de um cabo, entenda-se. É bom saber destas coisas, mesmo quando o barco fica em terra. Nessas ocasiões, em que o calor convida, o pior ainda seria uma azelhice. Aí é que nem nó de burro nos salva.
Os dentes do sáurio
Chama-se Galopim de Carvalho e não se livra de ser conhecido como o homem dos dinossauros. Ao JL de ontem disse que está sempre de férias, porque nunca pára de trabalhar. Uma verdadeira espécie em vias de extinção, eis o que é. Como cantava o madeirense Max, se o trabalho dá saúde e faz crescer os dentes, rapazes viva o descanso, que trabalhem os doentes!
quarta-feira, 3 de agosto de 2005
O escriturário de serviço
O personagem vinha da política de direita decidira-se a ser escritor, à esquerda. Estava por isso trancado em hotel com mar à vista a escrevinhar o seu livro, que a crítica «progressista» recebeu então com tolerante amabilidade. Eu acabara de estacionar o carro e vinha de saca às costas para um fim de semana, ainda a ruminar as últimas indigestões profissionais do dia. O porteiro, cumprimentador e obsequiador, achou que um tipo como eu tinha direito a compartilhar do segredo local: «o senhor professor está cá, com as suas escrituras!». Espantosa palavra para aqueles escritos, «escrituras». Como, com ironia e sumo de limão, disse uma vez um notável político que já se foi, dirigindo-se a outro que ainda por cá anda: «Ó F. você também tudo o que diz, cheira a papel selado!». Já agora: o homem teve sucesso, hoje é muito ministro, o «escriturário» claro, pois o outro continua porteiro e eu ruminante.
As asas do desejo
O Vergílio Ferreira disse numa entrevista que não gostava de viajar, gostava é de ter nascido em vários sítios. Como eu ubiquamente o compreendo esta tarde, em que não estou com quem desejaria estar.
Não se aceitam devoluções
«Asperamente sensível ao som de certas palavras. asperamente sensível a todas as estridências. asperamente sensivel às vibrações metálicas e às oscilações de tom, asperamente sensível à luz do sol à lua ardente do sol. asperamente sensível aos rumores do mundo». Eu sabia que havia um modo de o dizer e onde estava quem o disse. Encontrei-o, muito escondido na estante. É um daqueles livros pequenos que se somem na mutidão dos outros. Reli, aquela invulgar pontuação, aquele extraordinário modo de o dizer. Devia recortar a folha ou copiá-la para um papelinho. Trá-la-ia no bolso para mostrar a quem passasse ou afixava-a como os mendigos fazem à sua história lancinante. A cidade ficaria a saber. Não que estendesse a mão. Só para me compreenderem qualquer aspereza, devolvendo-ma.
terça-feira, 2 de agosto de 2005
À linha!
Estou sem rede! Através deste telefone, dedos hesitantes em teclado minúsculo, eis, qual mensagem numa garrafa: não vale a pena navegar quando, sem rede, nem se consegue pescar. Ao anoitecer, a continuarmos assim, decido-me: sigo à linha e ao candeio! Maldita Netcabo!
segunda-feira, 1 de agosto de 2005
«Uma vontade indomável»
Como viajava de autocarro ele teve tempo para ler e reler. Claro que o livro era, na sua simplicidade, dos que se deixava ler. A autora, uma norueguesa que casou com um húngaro e que nos fins da vida viveu na Suécia e morreu em Portugal. A capa, lindíssima, criava uma ideia que o texto desmentia: «De Budapeste ao Estoril». Claro que do Estoril há na narrativa quase nada. Mas não importa. Mesmo que não tivesse lido tudo, ter lido a singelíssima abertura já lhe valeu a pena: «A vida é um perpétuo desafio. À medida que ficamos mais velhos, que o nosso tempo começa a responder com menos energia, devemos pensar em tirar o máximo partido do tempo que nos resta». Hoje, vinha ele da visita ao hospital, a pensar que bom teria sido continuar no autocarro, em perpétuo movimento. A propósito, a autora chama-se Edle Astrup Hubary Cebrian. O livro, em português, tirado pela Oficina do Livro chama-se «Uma vontade indomável». Há nele aquelas coisas simples e óbvias, mas que nunca se sabem, nesta vida de asneiras.
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